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Estudo de Caso em Game Design: Abah’s Landing

Quem me conhece sabe que eu sou um apaixonado pelo universo da franquia The Elder Scrolls (Bethesda Softworks). Considero, sem dúvidas, um dos universos mais bem elaborados já criados na ficção e, de longe, o expoente disso na Indústria de Jogos.

Diferente dos textos que escrevi antes, introdutórios, críticos e de caráter quase filosófico, essa deve ser uma discussão analítica de Game Design e Direção Criativa.

Além disso, esperem um texto longo. Bem longo.

Sem mais a adicionar e com muita coisa para tratar, vamos seguir, explicando mais aprofundadamente sobre a jogabilidade de ESO para depois nos aprofundarmos no que faz Abah’s Landing e a Expansão Thieves Guild algo tão especial.

Primeiro, ESO é um daqueles Action MMOs que viraram moda em 2010s. Diferente do tradicional point’n click com foco no gerenciamento de cooldowns e status, ele abraça uma dinâmica mais acelerada, com foco em defender, esquivar e um combate mais próximo do de jogos de ação para consoles.

Menos Skills. Mais ênfase em movimentação, distância e timing.

Além disso, ele também integra diversas mecânicas secundárias desde o jogo base, como o Sneaking, a capacidade de se ocultar de inimigos, NPCs e Players para agir furtivamente, roubando alvos, abrindo fechaduras ou entrando em lugares restritos.

Toda essa dinâmica é muito semelhante ao que existe na franquia The Elder Scrolls, feito de uma forma que considera o aspecto MMO, portanto uma ação furtiva, por exemplo, desconsidera outros Player Characters estarem presentes observando aquilo acontecer em seu estado de ocultação, o que é bastante apropriado e torna as situações, mesmo ocorrendo em um mundo compartilhado, bastante próprias de cada Jogador.Fica o adendo que o mesmo não vale em instâncias de PvP, onde a furtividade torna os Player Characters invisíveis uns aos outros caso eles sejam adversários.

O mundo de ESO, por sua vez, é bastante familiar para a maioria. Ambientado em um universo de fantasia, ele é cheio de vastas florestas, pântanos, savanas, desertos, assim como cidades.

Estas, por sua vez, vão desde vilarejos com três ou quatro casas até metrópolis – de estética inglesa medieval à cidades dentro da copa de árvores gigantes – espalhadas pelo mundo, por planos dimensionais diferentes e encolhidas em uma estrutura metálica cheia de engrenagens.

Cada um desses espaços é pensado com um mood, transmitido pelos NPCs, pela arquitetura e pela narrativa associada às missões. Assim, cada hub que o jogo apresenta não é só um menu glorificado de bancos, lojas e estações de teletransporte, mas um local com personalidade e que, por seus motivos históricos e geográficos, pode inclusive ter mais ou menos dessas opções, como templos, fortificações internas, cemitérios, etc.

Explicado isso, fica fácil entender que ESO é, apesar de um MMO extremamente competente, um jogo que parece bastante genérico. Não fosse o fato de estar situado em um mundo tão rico, suas mecânicas primárias estariam na mesma linha de outros jogos como Neverwinter (Cryptic Studios) e New World (Amazon Game Studios).

Como um Jogador que tem um perfil claramente Explorer (leia sobre a Taxonomia de Bartle), a experiência que eu tenho com ESO é bastante satisfatória em todas as minhas dezenas de centenas de horas. Uma narrativa forte, um senso de coesão entre os conteúdos que te faz sentir relações de causa e consequência ao longo de sua aventura e modos diversos de experimentar as mecânicas do jogo, seja em PvP quanto PvE.

E é aí que Abah’s Landing entra em jogo.

A expansão Thieves Guild foi lançada em 2016 e eu só comecei a jogar seu conteúdo recentemente em 2021. Não por outro motivo, mas meu Player Character Principal, um Cavaleiro Breton Artífice, não é do tipo que se interessa muito por atividades ilícitas, fato que nunca me fez engajar com qualquer conteúdo do jogo que estivesse relacionado ao Sistema Criminal que ele possui, com seus “Níveis de Procurado” e “Recompensas”.

Recentemente eu criei um novo personagem, um Khajiit Assassino. Nesse momento, ele é um incorrigível delinquente com uma moral bastante contestável, senso de oportunismo e um fraco por qualquer proposta que envolva arrombar fechaduras, furtar objetos preciosos e esvaziar os cofres de algum nobre desavisado.

Meu Gato em seu habitat natural

Mais do que naturalmente, ele também se tornou o candidato perfeito para que eu explorasse uma nova área até então inédita, a cidade portuária de Abah’s Landing. Porta de entrada de todo tipo de mercadoria lícita e ilícita, lar de uma alta casta de Lordes Mercadores, companhias de mercenários e, claro, da Guilda dos Ladrões.

Imaginem minha surpresa ao descobrir que iniciando minha aventura nessa nova cidade eu estava, na verdade, iniciando um jogo totalmente novo.

Não, nada de diferente foi instalado no meu PC e nem as mecânicas do jogo mudaram propriamente, mas Abah’s Landing é a prova material de como um projeto de design consciente consegue transformar uma experiência de jogo, criar imersão, significado e contexto sem precisar explicar nada de forma escancarada.

Vamos primeiro ao mais óbvio: eu me tornei oficialmente um Ladrão.

Além de ter perdido meu réu primário, isso implica imediatamente numa maior exploração de uma mecânica que eu não estava muito acostumado, uma vez que cavaleiros de armadura e que usam martelos de guerra não costumam ser muito sutis em suas abordagens.

Recorrer à furtividade foi uma primeira adaptação mecânica que foi necessária para cometer invasões de domicílio e furtos de transeuntes sem ser pego por um entre dezenas de guardas que patrulham as ruas de Abah’s Landing.O ritmo da jogabilidade, portanto, passou a ser outro. A necessidade de entender o posicionamento de todos os envolvidos – dos patrulheiros ao meu alvo – se tornou fator primordial, além da compreensão de rotinas de deslocamento e pausa, algo extremamente comum em títulos do gênero Immersive Sim como Deus Ex (Eidos-Montreal) e Dishonored (Arkane Studios).

Desse modo, uma abordagem que poderia durar poucos segundos através da lógica direta de um cavaleiro – basta acertar a cabeça do alvo o mais forte que puder com o machado de guerra – passa a ser um cuidadoso estudo de minutos que pode terminar muito bem ou muito mal.

Caso o seu crime tenha sido mais grave e a recompensa por sua cabeça esteja maior, parabéns, eles nem irão pará-lo, mas já chegarão atacando, dispostos a punir sua transgressão com a morte e sem direito à reação, especialmente porque todos os guardas de ESO são imortais e só podem ser atrasados, não derrotados.

Para isso, Abah’s Landing reserva uma surpresa, elaborada cuidadosamente e integrada perfeitamente em seu Design de Nível: sua Arquitetura e Urbanismo.

Abah’s Landing é uma clássica cidade Redguard, inspirada em Agrabah, de Alladin (Disney) e na Bagdá da Idade Média. Uma potência rica, multicultural, suntuosa, cheia de jardins, palacetes e luxo, mas também pedintes, vagabundos e alguns aproveitadores.

Pensando nessa lógica, Abah’s Landing possui um urbanismo que estabelece uma via principal, ampla e desobstruída, por onde dá a sensação que uma caravana de mercadores pode passar à qualquer momento, cortada por várias ruelas, becos e rotas alternativas para se chegar aonde se quer.

Seus prédios têm as lajes conectadas, formando mezaninos e pequenos jardins suspensos, com escadas que dão para duas ou três alternativas de rota, enquanto seu nível térreo também possui diversas pequenas feiras ou pátios de depósitos de carga, naturais de uma cidade portuária que comercializa com todo o continente.

Enquanto todas as outras cidades de ESO são elaboradas sob a lógica de pátios ao redor de uma estrutura central, como um castelo, uma feira ou um cais, Abah’s Landing não só muda a perspectiva de sua planta baixa para algo muito mais interconectado como também explora uma topologia inédita até então, dando verticalidade para a exploração.

Representação Conceitual de Abah’s Landing na região chamada Hew’s Bane

Essa verticalidade, por sua vez, tem dois importantes componentes envolvidos. Há o aspecto mecânico / interativo, que se refere a forma como isso propicia o movimento do Player Character do Ponto A ao Ponto B; e há o aspecto narrativo / simbólico, que é a sensação intrínseca que esse tipo de construção espacial desperta, seja isso de forma conotativa ou denotativa.

Falando do primeiro aspecto e amarrando nossa ponta solta da furtividade, o fato de Abah’s Landing criar essas conexões e verticalidades permite que diversas estratégias sejam usadas para se atingir o mesmo objetivo ou escapar de uma situação perigosa caso seja necessário.

Evitar ruas movimentadas em prol de explorar becos estreitos é uma forma inteligente de escapar do olhar vigilante dos guardas, assim como catar passantes dessas regiões é muito mais simples do que assaltar um nobre em plena luz do dia numa via movimentada – o que não quer dizer que isso seja incentivado, há pouca recompensa atrelada à esse baixo risco.

Do mesmo modo, após cometer um crime, é muito mais simples tomar uma dessas rotas ou se esconder em uma dessas vielas por um tempo para baixar a poeira, já que conforme espera, o grau de alerta e agressividade dos guardas diminui.

Assim, o labirinto criado em Abah’s Landing favorece aqueles que sabem usá-lo, já que é muito comum um Ladrão iniciante tentar fugir de guardas após um crime mal sucedido só para esbarrar com um beco sem saída em uma curva mal feita. Morte certa.

Ficar em um ou dois andares acima dos seus alvos permite uma visão panorâmica da rotina deles e de seus pontos de vulnerabilidade, aproveitando inclusive que os guardas, tão comuns nas ruas principais da cidade, não chegam nem perto de lajes e passarelas improvisadas de madeira que auxiliam nessa verticalização do espaço.

Abah’s Landing e um de seus muitos lugares elevados com visão panorâmica
O Porto de Abah’s Landing e uma amostra da verticalidade projetada para essa cidade

A própria valorização desse espaço vertical passa por um design de nível impecavelmente construído. Em condições normais, ESO possui uma ação de pular extremamente irrelevante. A grande maioria dos seus cenários desobriga o Jogador de executá-la além da necessidade de atingir um ponto além de uma pequena queda, na maioria das vezes só por curiosidade ou para coletar um elemento opcional.

Aqui, mais do que ressaltado, o pulo se torna essencial para a navegação, uma vez que há uma grande irregularidade entre os níveis da cidade e suas rampas de travessia. Além disso, não são incomuns os pontos com cercas ou aberturas em que o Player Character pode saltar para uma queda não letal que irá abrir uma nova possibilidade de navegação ou fuga de guardas.

Isso não quer dizer que esses elementos não estejam presentes em outras localidades de ESO, mas é fato que eles são muito mais valorizados e funcionam de forma muito melhor em Abah’s Landing, de modo que a experiência de ser um Ladrão em fuga em qualquer outro local é muito menos interessante e se resume a conseguir sair do raio de alcance dos guardas competindo em uma prova de 100 metros com barreiras.

O mesmo vale para todas as outras mecânicas e elementos mencionados posteriormente neste texto: Abah’s Landing é o pináculo da sua experiência como um Ladrão em ESO.

Leia aqui todos os posts sobre Música

Para fins de contraposição, é interessante apresentar a forma como outros jogos trabalham a dimensão narrativa da verticalização.

Dishonored, por exemplo, usa esse aspecto para estratificar, literalmente, as classes sociais de seu universo. Nele, os pobres e enfermos se encontram no solo, vítimas em potencial de agressões e da peste, enquanto os nobres e ricos se encontram nos níveis mais elevados da cidade de Dunwall, dando uma noção profunda de que a classe dominante está, de fato, acima da classe dominada.

O mesmo vale Deus Ex: Mankind Divided, onde a cidade de Praga adota uma distribuição onde as pessoas com melhorias cibernéticas, consideradas uma casta social superior, segregam pessoas sem essas melhorias – adivinhem como – através da verticalização do espaço. Melhorados ciberneticamente em cima, pessoas normais em baixo.

Outros tantos exemplos podem ser dados na cultura pop como um todo sobre esse tipo de utilização do espaço. Narrativas cyberpunk normalmente trabalham com a elite em arranha-céus e com seus carros voadores, enquanto as ruas e o nível do solo são habitados pela corja mais desprezível ou pobre.

Até mesmo a forma como fortalezas e castelos medievais foram pensados também reflete isso. Os níveis inferiores, mais próximos das muralhas, são reservados aos comuns e ao pequeno burguês, com níveis intermediários de posse daqueles que ascenderam socialmente e o topo sendo o lar de nobres e abastados de sangue azul.

Até mesmo a própria franquia The Elder Scrolls já usou esse artifício ao elaborar a cidade de Whiterun, em The Elder Scrolls V: Skyrim. Há o Distrito das Planícies, espaço dos comerciantes e moradores comuns; o Distrito do Vento, morada dos mais ricos e dos locais sagrados; e o Distrito das Nuvens, casa do Jarl em seu castelo de Dragonsreach.

Isso dito, uma vez um sábio disse que o poder reside onde os homens acreditam que ele reside e essa frase é exatamente o que brinca com a forma como Abah’s Landing trabalha a sua noção de verticalidade.

Diferente dos exemplos citados acima, a cidade de Abah’s Landing joga com a inversão de valores. As ruas são ricas, os telhados são pobres. No nível do solo os nobres dançam em pátios com fontes, ouvem música e comem frutas exóticas, enquanto que nos andares superiores o máximo que vemos são artistas de rua se apresentando para desocupados.

Sim, em Abah’s Landing, os ricos estão embaixo e os pobres estão em cima.

Mas por que?

Ora, se o poder reside onde os homens acreditam que ele reside, onde está o poder em Abah’s Landing? Naqueles que têm o Ouro ou naqueles que podem tomá-lo?

A verticalidade invertida de Abah’s Landing foi uma das coisas que mais me surpreendeu tematicamente quando eu me toquei desse fato. Neste lugar, você, o Player Character Ladrão, é um predador. Os nobres, ricos e poderosos, embora achem que mandam na cidade, são suas presas.

Estar nas passarelas de madeira, nesse caso, não é um sinal de pobreza, mas sim o ato de um caçador à espreita. Ter a visão de todo o espaço ao redor, acompanhar o movimento do alvo e poder estudar rotas de chegada e de saída muito antes de executar o ato é algo que só pode ser feito com essa configuração espacial, de cima para baixo, e para isso vale inverter a lógica do espaço.

Ok, acredito que já foi o suficiente sobre o Design de Nível e do Urbanismo de Abah’s Landing. Há, claro, muito mais a se falar, mas existe um outro aspecto da Expansão Thieves Guild que vale muito a pena mencionar, pois ele modula, em grande parte, o senso de imersão e a bússola moral do Jogador durante essa aventura.

Esse aspecto é como ESO apresenta para você um caracterizador dos seus alvos quando você está preparado para roubá-los. Esse caracterizador é uma palavra que apresenta o que ele é naquele mundo.

Isso pode ir desde “Commoner” ou “Beggar” até “Noble”, “Sellsword” e “Outlaw”, passando por vários outros. Essa única palavra é o suficiente para mudar profundamente a experiência de jogo.

Novamente, temos dois níveis possíveis de análise: mecanicamente e narrativamente.

Mecanicamente, esse caracterizador vem acompanhado de um percentual de chance de cometer o furto. Ao executar a ação, o resultado é devolvido ao Jogador na forma de um objeto furtado ou do NPC sendo alertado da ação.

No segundo caso, uma recompensa é adicionada ou incrementada em seu Player Character, guardas estarão mais atentos ou te perseguirão e por aí vai. Esperar mais tempo para cometer o furto cria brechas onde a chance de sucesso aumenta, representando a paciência para aproveitar o melhor momento.O caracterizador do NPC, nesse momento, irá afetar alguns fatores.

O caracterizador do NPC, nesse momento, irá afetar alguns fatores.

Quando você está prestes a cometer um crime e ser vítima de um

Primeiro, alguns caracterizadores são mais fáceis de se furtar do que outros. Pedintes e Pessoas Comuns, por exemplo, são mais simples de roubar do que outros Ladrões, o que fica explícito através da chance percentual base para cada um deles – com os Ladrões tendo uma chance percentual base menor do que os outros dois que foram mencionados – e através do nível de visibilidade, representado pelo olho no retículo do mouse, que pode ir de totalmente aberto a totalmente fechado, respectivamente quando o Player Character está totalmente visível enquanto tenta se esconder ou totalmente escondido, representando a percepção de seu alvo e dos arredores.

Ao mesmo tempo, caracterizadores diferentes retornarão recompensas diferentes em um furto bem sucedido. Pedintes terão pouco ou quase nada a oferecer para um Ladrão enquanto se lamentam pela vida que levam em Abah’s Landing, enquanto Nobres tem bolsos cheios de Ouro e itens preciosos.

Vale destacar que é muito comum que os Nobres sejam extremamente fáceis de se furtar sozinhos, mas que possuem a mania irritante de estarem próximos de guardas ou sendo escoltados por mercenários, um sinal de que eles são bastante desleixados por natureza e precisam de alguém que os vigie e guarde.

Furtar um Pedinte possui até 90% de Chance de Sucesso, mas será que vale a pena?

Agora, o aspecto narrativo da questão.

Aqui entramos em um conjunto de valores morais, ética e de construção de mundo.

A Thieves Guild de ESO prega, entre suas crenças, que não se deve roubar dos pobres. A lógica de Robin Hood ajuda a construir empatia por um grupo que, em outra situação, poderia só ser considerado uma gangue comum.

Não  existem regras sistêmicas que impeçam o furto nesses casos, inclusive o contrário, com os percentuais maiores sendo um convite ao crime, literalmente, e Pedintes estarem estrategicamente posicionados nos lugares mais isolados e distantes de qualquer guarda.

Por outro lado, conforme vai ficando claro para o Jogador e seu Player Character vai evoluindo como Ladrão, com mais habilidades e recursos disponíveis para empreender furtos mais ousados, o Jogador também passa a assimilar que crimes como esses, contra os menos favorecidos, não só não valem seu tempo como chegam a ser ofensivos.

Esse tipo de situação, quando o jogo escancara para o Jogador a sua superioridade diante de um determinado desafio, é extremamente desestimulante. Socar um saco de pancadas que não reage não é divertido, da mesma forma que apertar um botão para cometer um furto que não foi desafiador em nenhum aspecto também não é.

Daí surge uma valiosa lição de design: o fim não é interessante e sim o meio.

Leia aqui todos os posts sobre Música

Não importa que furtou algo ou derrotou um inimigo que foi apresentado pela narrativa como extremamente poderoso e ameaçador. Se não gerar engajamento, não for desafiador ou não promover uma interação interessante, é só uma vitória vazia, algo desestimulante e que faz o jogo perder substância.

Também não precisa ser extremamente difícil, antes que me acusem de dizer que esse é o único caso e acharem que eu só devo gostar de jogos como Dark Souls, mas precisa ser condizente com as expectativas do Jogador e a imagem mental que ele construiu para aquilo. Para isso existe a lógica do Flow, mas essa é outra história.Voltando para Abah’s Landing, esses caracterizadores também possuem um grande potencial de storytelling. A partir deles é possível montar narrativas emergentes, simular situações, imaginar jornadas, tudo sem que o jogo tenha que escrever uma linha de texto sobre isso.

Voltando para Abah’s Landing, esses caracterizadores também possuem um grande potencial de storytelling. A partir deles é possível montar narrativas emergentes, simular situações, imaginar jornadas, tudo sem que o jogo tenha que escrever uma linha de texto sobre isso.

Um Trabalhador dançando em uma área afastada da cidade ao som do tambor de um artista de rua. Será que ele acabou de sair do trabalho e está querendo se divertir um pouco?

Há várias situações como essa presentes por toda Abah’s Landing. Há reuniões de NPCs que se encontram sob um tapete para dançar ou jogar jogos de azar com dados.

Há Mercenários que caminham por distritos mais afastados, como se estivessem na caça de um alvo que foram contratados para capturar.

Existem Ladrões que são encontrados nos topos das construções que estão, claramente, à espreita de seu próximo alvo, não muito diferente da postura do Player Character.

Ocorrem, inclusive, situações mais exóticas, como NPCs com modelos visuais de pessoas comuns que, quando aproximados, são caracterizados como Nobres. Estariam eles se disfarçando de alguém normal para se esconder? Tentar sair das restrições que a vida de nobreza impõe ao distanciá-los do mundo? Nunca saberemos.

Um dos meus casos favoritos é o de um High Elf chamado Ferlulril que passeia calmamente todas as manhãs por uma das áreas centrais da cidade. Ele lê seu livro em uma cadeira à sombra de uma palmeira, depois vai até uma apresentação de um encantador de serpentes e até alguns comerciantes locais.

Imaginem a surpresa que eu tive quando me aproximei para furtá-lo e descobri que ele estava caracterizado como um Cultista.

Felulril sentado à sombra de uma palmeira, lendo seu livro e provavelmente pensando em como abrir um portal interdimensional

Que tipo de questionamentos essa “descoberta” acende? Felulril está de passagem por Abah’s Landing? É parte de um plano maior que envolve a infiltração de Cultistas na cidade? Ele é um residente da cidade, mas que secretamente tem um altar para um Príncipe Daédrico? Passei a perceber que não só ele, mas outros NPCs estavam caracterizados como Cultistas e executavam ações comuns, como jogar dados, comprar frutas e transportar mercadorias no cais.

Se há ou não uma conspiração em Hew’s Bane, só o futuro dirá.

Esse tipo de constatação muda bastante a perspectiva sobre o ambiente do jogo, oferece profundidade e alimenta a imaginação do Jogador com tantas opções que seria impossível que os Designers elaborassem todas as possibilidades previamente.

Isso, é claro, é uma prática de Design bem executada, que volta a brincar com a forma como o Jogador enxerga o jogo e provoca ele a pensar não só em seus alvos do ponto de vista de abordagem, mas também da perspectiva ética.

Será que é certo furtar um Trabalhador comum? E um Cultista, ele merece ser furtado porque é, obviamente, um vilão, mesmo que não tenha feito nada? Um Nobre, por ser um Nobre, é sempre um alvo ou aqueles que estão se disfarçando em meio aos menos favorecidos merecem um tratamento diferenciado por serem mais “humanos”? Cada um desses questionamentos, cada faceta que o jogo oferece ao Jogador alimenta a imersão, cria um ambiente mais orgânico e apresenta escolhas significativas em diversas dimensões, o que promove efetivamente a interação lúdica, de brincar, experimentar e experienciar algo.

E com isso encerramos este pequeno estudo de caso sobre Abah’s Landing.

Através dele, espero, foi possível entender um pouco mais sobre como um projeto de Design consciente de seus objetivos pode agregar valor a um projeto, emergindo significado e potencializando os recursos criados para tornar o produto mais eficiente em seu objetivo.

Essa missão é feita tanto num nível sistêmico quanto mecânico e narrativo, com todos os componentes que permeiam aquele estágio ou situação sendo orientados a provocar o Jogador de forma específica.

Ainda há muita coisa para falar de Abah’s Landing e de diversas outras áreas de The Elder Scrolls Online. Não tocamos no Design de Som, que igualmente colabora com a imersão, ou em como o jogo trabalha com sua HUD, Diegese e VFX, todos novamente orientados a um objetivo comum.

Há também as Heists, modos de jogo individuais ou em grupo com o objetivo de realizar um roubo no menor tempo possível e que pune os participantes por executarem assassinatos no percurso. Uma total inversão da lógica padrão de ESO.

Por fim, me sinto satisfeito de ter feito esse texto, retirado esse peso do meu coração ao falar sobre algo que me surpreendeu em um jogo que, apesar de eu gostar bastante, não parecia mais poder me impressionar ou me ensinar algo sobre Design além da execução arroz com feijão que costumamos ver.

Felizmente, fui positivamente surpreendido e Abah’s Landing se tornou, bem ou mal, uma das áreas que eu passo mais tempo hoje em ESO, seja cumprindo Dungeons e derrotando World Bosses à moda antiga ou planejando meu próximo furto por vários minutos até ser pegue em um deslize por um guarda e ter que realizar uma fuga cinematográfica pelos telhados da cidade.

Arison Heltami

Arison Heltami

Designer de Jogos com formação multidisciplinar nas áreas de UX Design, Gestão de Projetos, Programação e Psicologia Cognitiva, aplicadas com foco em experiências lúdicas digitais e analógicas.

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